Os santos mostram-nos o potencial da nossa humanidade

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Houve tempos em que se considerava que os místicos, como Santa Teresa de Jesus, percorriam um caminho diferente do dos outros cristãos. Como consequência, os escritos dos místicos pareciam representar uma espiritualidade de elite, espiritualidade reservada só a alguns que não se podia aplicar à maioria.

Hoje entendemos que estes santos somos nós, com maiúsculas. Eles mostram-nos o potencial da nossa humanidade. Estão na cabeça da coluna e mostram-nos o impacto do amor de Deus nas suas vidas. O que escrevem não é algo de especial reservado somente a alguns, mas serve de orientação e de alento para todos. O caminho que descrevem é mais normativo do que excepcional.

Um dos contributos de Santa Teresa de Jesus é o de indicar alguns sinais na vida de uma pessoa que cresce na santidade. Independentemente de que uma pessoa tenha tido ou não experiências religiosas extraordinárias (como vozes e visões semelhantes às de Santa Teresa), estes sinais indicam que o caminho espiritual está assente numa base firme. São sinais da transformação, da crescente abertura da pessoa à acção do Espírito. Podemos assinalar entre estes “sinais de santidade”: Profunda humanidade. Ampla liberdade. Grande generosidade.

John Welch, O. Carm.

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Solenidade de Cristo, Rei do Universo – Ano B

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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João (Jo 18, 33-37)

Naquele tempo Pilatos entrou de novo no pretório, chamou Jesus e perguntou-lhe: «Tu és rei dos judeus?» Respondeu-lhe Jesus: «Tu perguntas isso por ti mesmo, ou porque outros to disseram de mim?» Pilatos replicou: «Serei eu, porventura, judeu? A tua gente e os sumos sacerdotes é que te entregaram a mim! Que fizeste?» Jesus respondeu: «A minha realeza não é deste mundo; se a minha realeza fosse deste mundo, os meus guardas teriam lutado para que Eu não fosse entregue às autoridades judaicas; portanto, o meu reino não é de cá.» Disse-lhe Pilatos: «Logo, Tu és rei!». Respondeu-lhe Jesus: «É como dizes: Eu sou rei! Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz.»

Reflexão

O juízo contra Jesus teve lugar, provavelmente, no palácio em que residia Pilatos quando se dirigia a Jerusalém. Ali encontram-se, numa manhã de Abril do ano trinta, um rei indefeso, chamado Jesus e o representante do poderoso sistema imperial de Roma.

O evangelho de João relata o diálogo entre ambos. Na realidade, mais que um interrogatório, parece um discurso de Jesus para esclarecer alguns temas que interessam muito ao evangelista. Num determinado momento, Jesus faz esta solene proclamação:”Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz”. Esta afirmação recolhe uma característica básica que define a trajectória profética de Jesus: a sua vontade de viver na verdade de Deus. Jesus não somente diz a verdade, mas busca a verdade e somente a verdade de um Deus que deseja um mundo mais humano para todos os seus filhos e filhas.

Por isso, Jesus fala com autoridade, porém, sem falsos autoritarismos. Fala com sinceridade, porém sem dogmatismos. Não fala como os fanáticos que tratam de impor a sua verdade. Tampouco, como os funcionários que a defendem por obrigação ainda que não acreditem nela. Não se sente jamais guardião da verdade, mas testemunha.

Jesus não converte a verdade de Deus em propaganda. Não a utiliza em proveito próprio, mas em defesa dos pobres. Não tolera a mentira ou o encobrimento das injustiças. Não suporta as manipulações.

Esta verdade que Jesus traz consigo não é uma doutrina teórica. É um apelo que pode transformar a vida das pessoas. Jesus já o havia dito: “Se vos mantiverdes fiéis à minha Palavra… conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres”.

Palavra para o caminho

A mentira é hoje um dos pressupostos mais firmes da nossa convivência social. O homem contemporâneo vê-se obrigado a pensar, a tomar decisões e a agir envolto numa densa névoa de mentira e falsidade, da qual é difícil libertar-se. Contudo, as palavras de Jesus são um desafio e uma promessa: “a verdade vos tornará livres”. Santa Teresa de Jesus que amava a verdade, diz-nos estas palavras admiráveis de mulher crente: “a verdade padece mas não perece”.

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São Nuno de Santa Maria, santo da humildade

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Uma das características da figura do novo santo que mais chama à atenção é, sem dúvida alguma, a humildade. Não apenas no fim da sua vida, quando, sendo já carmelita, viveu de maneira totalmente austera e penitente, mas, mesmo sendo Condestável e uma das figuras mais célebres e admiradas da Coroa portuguesa, Nuno foi sempre um homem humilde, um homem que fugiu das honras excessivas e das ambições de poder.

É bem conhecida a sua tendência para a humilhação pessoal nos últimos anos da sua vida como donato carmelita, a ponto do príncipe D. Duarte, temeroso de que a sua conduta provocasse a irrisão ou o menosprezo por parte da coroa ou das instituições mais importantes do reino, o proibir de mendigar pelas ruas de Lisboa e de ir para um convento longínquo e perdido para não ser reconhecido como Condestável. Diante dos dois pedidos do príncipe, frei Nuno teve que ceder. Mas houve outros pedidos que o velho carmelita recusou com firmeza. Por exemplo, recusou ser sacerdote ou evitar os trabalhos mais humildes e baixos do mosteiro, trabalhos que, segundo o parecer do príncipe e de muitos nobres, eram contrários à dignidade e ao renome do herói nacional. Convém não esquecer que Nuno era, além disso, parente da família real, pelo casamento da sua filha Beatriz (casada com D. Afonso, filho de João I), o que tornava ainda mais incómoda para os monarcas a sua atitude. Também se negou totalmente a continuar a usar o título de Condestável ou a ser chamado por outro nome que não fosse o de Frei Nuno de Santa Maria. Como víamos mais acima, a sua resposta foi radical e sem ambiguidades: O Condestável morreu e está enterrado num santuário…

Estamos, sem dúvida, diante de um aspecto muito significativo para a nossa vida cristã actual. Num mundo que idolatra o poder, a fama, o prestigio social (às vezes inclusivamente à custa da verdade ou da justiça); num mundo em que se fomenta a vaidade das riquezas ou dos títulos; num mundo em que, apesar de um terço da humanidade passar necessidade e em algumas zonas do planeta permanecer a praga terrível da fome, se faz ostentação de riquezas e de luxos totalmente desproporcionados; num mundo em que vivemos como escravos da imagem pessoal, do look, das aparências, do culto do corpo e do politicamente correcto… o exemplo de São Nuno recorda-nos o valor da humildade e da simplicidade e convida-nos a nós, carmelitas, de um modo particular, a manter esse espírito, essa maneira de ser e de estar no mundo, por muito importante que possa ser o nosso trabalho, a nossa missão ou a nossa posição eclesial.

Posteriormente, grandes carmelitas viveram e ressaltaram o valor da humildade. Pensemos no célebre adágio de Santa Teresa de Jesus, nas sextas moradas (humildade é andar na verdade); ou no convite à simplicidade do pequeno que faz Santa Teresa de Lisieux; ou no exemplo sublime de humildade que sempre deu o Beato Tito Brandsma, mesmo ocupando os mais altos cargos na universidade e na vida civil do seu país. Muitos outros exemplos se poderiam citar dessa vivência profunda da humildade que sempre aconteceu no Carmelo. Trata-se, sem dúvida, de uma humildade cheia de coragem e de valentia, de uma humildade que não é apenas uma virtude psicológica, mas uma consequência da fé no Deus encarnado, no Deus que não duvidou em assumir a nossa humilde e frágil condição, fazendo-se um como nós para salvar, a partir de baixo, o género humano (cf. Flp. 2, 6-11).

Que o exemplo de São Nuno de Santa Maria nos ajude também a nós a viver a simplicidade evangélica, a não nos deixarmos seduzir pelas vaidades deste mundo (às vezes muito subtis) e a estar sempre próximos e solidários com os últimos, os marginalizados, com os pequenos e excluídos.

Fernando Millán Romeral, O. Carm.

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Deus é a nossa medida

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Muitos (…) gostariam que Deus quisesse o que eles querem. Mas entristecem-se de querer o que Deus quer, por receio de acomodar a sua vontade à de Deus. É por isso que eles pensam muitas vezes que aquilo que não satisfaz os seus gostos e desejos não é vontade de Deus; pelo contrário, julgam que aquilo que os satisfaz, também satisfaz a Deus. Quer dizer, medem a Deus por si em vez de se medirem eles por Deus. Isto é completamente contrário ao que Ele ensinou no Evangelho, quando disse: Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa, há-de encontrá-la (Mt 16, 25).

São João da Cruz

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33º Domingo do Tempo Comum – Ano B

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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos (Mc 13, 24-32)

Naquele tempo disse Jesus aos seus discípulos: «Naqueles dias, depois duma grande aflição, o Sol vai escurecer-se e a Lua não dará a sua claridade, as estrelas cairão do céu e as forças que estão no céu serão abaladas. Então, verão o Filho do Homem vir sobre as nuvens com grande poder e glória. Ele enviará os seus anjos e reunirá os seus eleitos dos quatro ventos, da extremidade da terra à extremidade do céu.» «Aprendei, pois, a parábola da figueira. Quando já os seus ramos estão tenros e brotam as folhas, sabeis que o Verão está próximo. Assim, também, quando virdes acontecer estas coisas, sabei que Ele está próximo, às portas. Em verdade vos digo: Não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam. O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão. Quanto a esse dia ou a essa hora, ninguém os conhece: nem os anjos do Céu, nem o Filho; só o Pai.»

Horizontes da Palavra

O cenário do Evangelho deste Domingo XXXIII do Tempo Comum (Marcos 13,24-32) não é de terror, mas de amor! Novos céus e nova terra, saídos das mãos de Deus-Pai, com o Filho-que-Vem, e que está próximo, à porta.

Não caminhamos para o caos. Podemos confiar em Deus, nosso Criador e Pai. A partir desta confiança total, Jesus expõe a sua esperança: a criação actual terminará, porém será para deixar lugar a uma nova criação, a qual terá Cristo ressuscitado como centro. Marcos quer oferecer algumas convicções para alimentar a esperança dos cristãos.

Primeira convicção. Esta vida que agora vivemos não será para sempre. Um dia chegará a Vida definitiva, sem espaço nem tempo. Viveremos no Mistério de Deus.

Segunda convicção. Jesus voltará e os seus seguidores poderão ver finalmente o seu rosto: “verão o Filho do Homem vir”. O sol, a lua e os astros apagar-se-ão mas o mundo não ficará sem luz. Será Jesus quem o iluminará para sempre instaurando a verdade, a justiça e a paz na história humana tão escrava hoje de abusos, injustiças e mentiras.

Terceira convicção. Jesus trará consigo a salvação de Deus. Chega com o poder grande e salvador do Pai. Não se apresenta com aspecto ameaçador. O evangelista evita falar aqui de juízos e de condenações. Jesus vem “reunir os seus eleitos”, os que esperam com fé a sua salvação.

Quarta convicção. As palavras de Jesus “não passarão”. Não perderão a sua força salvadora. Continuarão a alimentar a esperança dos seus seguidores e a ser o alento dos pobres. Não caminhamos para o nada, para o vazio. Espera-nos o abraço de Deus.

Palavra para o caminho

Uma parte da Igreja antiga lia este “discurso escatológico” e outros textos similares do Novo Testamento no sentido da chegada iminente do “fim do mundo” (leitura ainda hoje desgraçadamente doentia nas seitas, com ano, dia e hora marcados!). Sim, é do “fim do mundo” que se trata, mas num sentido novo e inaudito: é a Palavra de Deus que não passa, e que é Amor e é Primeira e Última, sempre nova, portanto, que vem “pôr fim ao nosso mundo” de posse e egoísmo, auto-satisfação e auto-expansão ilimitada. É o Último, que é o Amor gratuito e desinteressado, que põe fim ao penúltimo, que é a nossa vã maneira de viver. Neste sentido novo, é de desejar que o nosso mundo velho e caduco entre em agonia e acabe já, para que comece verdadeiramente em nós e já um mundo novo e belo, cuja matriz é o Amor gratuito e incondicional. Neste sentido intenso e belo, vale a oração “Senhor, vem!”, porque, com sabedoria serena, sabemos que “o Senhor vem!” (António Couto).

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“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão”

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São muitos os que nunca pegaram nos evangelhos. Acostumados a escutar na igreja algumas passagens, não lhes passa pela cabeça que também eles podem ler pessoalmente as palavras de Jesus e conhecer a sua forma de agir. Deste modo, ficam privados de uma das experiências mais importantes para alimentar a sua fé. É difícil ler os evangelhos? É necessária alguma preparação especial?

O importante é abrir os evangelhos e estar convencido de que Jesus tem algo a dizer à minha vida. As suas palavras podem dar um novo sentido a tudo o resto. O evangelho, lido e relido com fé, pode transformar a minha forma de viver. Nele encontrarei luz e força para enfrentar a vida de maneira mais humana.

Há muitas formas de ler o evangelho. Alguns fazem-no para defender melhor as suas próprias posições e atacar com maior contundência os seus adversários. Outros procuram normas seguras para saber a que devem segurar-se. Só acerta o que procura encontrar-se sinceramente com a pessoa de Cristo. É ele quem pode transformar a nossa vida.

Esta postura de procura é essencial. Quem já sabe tudo e tem tudo claro, nunca aprenderá do Mestre de Nazaré; os que se sentem proprietários satisfeitos da sua fé permanecem geralmente impermeáveis à sua palavra. O evangelho é para quem procura. Estou convencido que só o descobrem os que se sentem mal, os que se sabem pecadores, os que necessitam de luz, os que procuram Deus.

O evangelho deve ser lido sem pressa, dedicando tempo à sua leitura. O encontro com uma pessoa não se consegue olhando para o relógio. São necessárias a calma e o sossego. Não devemos ter pressa para acabar de ler uma passagem. Não se trata de ler um livro para ver o que diz, mas de escutar uma pessoa que pode iluminar a minha existência com uma nova luz.

Há muitos métodos para ajudar na iniciação à leitura dos evangelhos. O mais simples e prático é ler devagar um relato, observando o que diz e o que Jesus faz. As suas palavras e a sua maneira de agir ajudar-me-ão a descobrir o modo mais correcto de viver perante Deus e os outros. Convém parar em cada momento para colocar perguntas como estas: O que é que Jesus me ensina com isto? Como devo a partir de agora entender a minha vida? A que é que devo dar importância? Daqui em diante, onde encontrarei forças para viver?

Encontro-me frequentemente com pessoas decepcionadas devido a certos comportamentos no seio da Igreja. São cristãos que procuram sinceramente mais verdade. Pessoas que têm necessidade de compreensão e de esperança. Todos elas encontrar-se-iam no evangelho com Alguém diferente. Poderiam comprovar por experiência o que Jesus disse um dia: “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão”.

J. A. Pagola

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São Nuno de Santa Maria, santo de Maria

 

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Outra característica muito definida do perfil espiritual de São Nuno foi a sua devoção à Virgem Maria. Já na sua vida de soldado se encomendava sempre à Virgem Santíssima, antes das batalhas, e pedia também aos soldados que o fizessem. Tinha plena confiança na protecção de Nossa Senhora. Jejuava frequentemente em honra de Nossa Senhora e fomentava sempre a devoção mariana no meio daqueles que o rodeavam. De igual modo, no fim das batalhas, costumava peregrinar a algum santuário mariano.

Por isso mandou reconstruir alguns deles que estavam abandonados ou em mau estado. Ele mesmo pagou a reconstrução de alguns templos, ou mandou construir novos, ou decorá-los dignamente. Neste sentido, muitas igrejas dedicadas a algum orago mariano devem à maior ou menor participação do santo Condestável a sua criação ou subsistência, como as de Sousel; o templo dedicado a Nossa Senhora dos Mártires, em Estremoz; Vila Viçosa; Portel; Évora; Mourão; Camarate; Monsaraz; etc. Um lugar especial merecem, na lista, tanto o templo dedicado a Santa Maria das Vitórias (conhecido como Batalha), construído pelo próprio Rei D. João I a instâncias do seu Condestável para comemorar a batalha de Aljubarrota (perto de Fátima, é uma das jóias do gótico português), como o sumptuoso templo do Carmo, em Lisboa. Alguns historiadores apontam também a intervenção do santo Condestável no auge que em Portugal foi tendo a devoção à Imaculada Conceição, que, com o tempo, se haveria de converter na Padroeira do país, em 1640, a instâncias do Rei D. João IV.

Logicamente que a piedade mariana de Nuno cresceu com o contacto com os carmelitas e, sobretudo, ao ingressar no convento de Lisboa como irmão donato. O facto de ter escolhido, como nome religioso, o de “Nuno de Santa Maria” é, a todos os títulos, significativo. Consta que passava horas em oração diante duma imagem de Nossa Senhora, a quem se encomendava constantemente. O seu exemplo deve ter contribuído, sem dúvida, para que o templo se convertesse num centro importantíssimo de piedade mariana.

Uma vez mais o exemplo de São Nuno pode ser também um estímulo para a nossa própria vida espiritual. Certamente que a devoção mariana de Nuno era vivida sob as formas e expressões de piedade daquela época. Cada período da história deve procurar as suas próprias expressões e, no caso concreto do Carmelo, somos chamados a mostrar e a difundir a devoção à Virgem Santíssima de maneira que seja um reflexo da boa notícia da salvação em Cristo. Devemos conseguir que, como o Concílio Vaticano II nos pediu, a nossa piedade e a nossa devoção mariana não desemboquem nem num afecto estéril e transitório, nem numa vã credulidade (LG 67).

Fernando Millán Romeral, O. Carm.

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São Nuno de Santa Maria, santo da Eucaristia

Um dos traços que sobressaem do perfil espiritual de São Nuno é a sua profunda piedade eucarística. Indubitavelmente, esta piedade aconteceu nos moldes e formas típicas daquela época. É bem conhecido o seu desejo de restaurar as igrejas devastadas pela guerra ou por qualquer outra causa, para que a Eucaristia pudesse ser celebrada com dignidade. Fundou ou restaurou também confrarias do Santíssimo Sacramento em muitos lugares, e fomentou as celebrações do Corpus, insistindo e ordenando que estas se fizessem com solenidade, decoro e piedade, e tudo isto, precisamente numa época da história da Igreja em que surgiram, em diversos lugares, críticas à ideia da presença real.

De igual modo, quer como Condestável do Exército, quer no convento, participava frequentemente na Eucaristia, preparando-se espiritualmente com muita seriedade e com penitências e jejuns. Contam as crónicas da época, e assim o recolhe o sumário do processo, que uma vez em que lhe perguntaram sobre os motivos pessoais de dita piedade eucarística, o Condestável respondeu: Quem quiser ver-me vencido nas batalhas que me afaste deste sagrado convite, no qual o próprio Deus, pão dos fortes, vigora os homens. Portanto, fortalecido com este manjar, revisto-me do ânimo e valor necessários para vencer o inimigo.

Para além do caso pontual em si e das circunstâncias do mesmo, não deixa de ser interessante para nós esta confiança plena na Eucaristia que, concebida como pharmakon (como lhe chamam alguns Padres Gregos), nos ajuda a vencer os inimigos da vida, que já não são soldados ou cavaleiros reais, mas inimigos mais perigosos, como o pecado, a violência, o egoísmo.

Esta centralidade da Eucaristia nas nossas vidas liga muito bem com o espírito carmelita, uma vez que, já a partir da própria Regra, no Capítulo XIV, o carmelita é chamado a colocar a eucaristia como o centro (não só arquitectónico ou temporal, como pede o texto da Formula Vitae), mas no centro das nossas inclinações, das nossas inquietações, dos nossos apostolados e das nossas vidas.

Que o exemplo da piedade eucarística de São Nuno de Santa Maria nos ajude a revitalizar a nossa vivência da eucaristia, para que o sacramento central da nossa fé não se converta numa mera rotina ou numa mera actividade pastoral, mas que ilumine toda a nossa vida e projecte os valores do reino sobre o nosso mundo e a nossa sociedade actual.

Fernando Millán Romeral, O. Carm.

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32º Domingo do Tempo Comum – Ano B

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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos (Mc 12, 38-44)

Continuando o seu ensinamento, Jesus dizia: «Tomai cuidado com os doutores da Lei, que gostam de exibir longas vestes, de ser cumprimentados nas praças, de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e nos banquetes; eles devoram as casas das viúvas a pretexto de longas orações. Esses receberão uma sentença mais severa.» Estando sentado em frente do tesouro, observava como a multidão deitava moedas. Muitos ricos deitavam muitas. Mas veio uma viúva pobre e deitou duas moedinhas, uns tostões. Chamando os discípulos, disse: «Em verdade vos digo que esta viúva pobre deitou no tesouro mais do que todos os outros; porque todos deitaram do que lhes sobrava, mas ela, da sua penúria, deitou tudo quanto possuía, todo o seu sustento.»

Reflexão

O Evangelho deste 32º Domingo do Tempo Comum, Marcos 12,38-44, põe em cena e em claro destaque uma viúva pobre que dá a Deus a sua vida toda, em contraponto com os escribas e muitos outros, que fazem bom teatro religioso. A cena central passa-se no átrio das mulheres do Templo de Jerusalém, num lugar chamado «Casa do Tesouro». Muita gente deitava aí muito do que lhe sobrava, mas a viúva pobre deu «tudo quanto tinha, a sua vida toda!».

O Evangelho refere que a viúva é pobre. Duplamente desfavorecida, portanto. Enquanto viúva e enquanto pobre. Mas a tecla que soa mais forte, é que deu tudo, ainda que tenha dado pouco. O acento não está posto na quantidade, mas na totalidade. A viúva deu toda a sua vida, tudo o que tinha. Não se questiona sobre como vai viver a seguir. Dá um salto no abandono total de si mesma ao Senhor. Ela é verdadeiramente filha de Abraão, o Pai da fé. Espera contra toda a esperança. Lança-se nos braços de Deus.

É bom que, observando bem esta cena exemplar, aprendamos a passar da mera ajuda para o dom de nós mesmos. Dom total. O discípulo de Jesus, à maneira de Jesus, deve pôr em jogo a própria vida. Tudo, e não apenas o supérfluo. Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Efésios 5,2), por mim (Gálatas 2,20). O supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo transforma a vida para sempre.

Palavra para o caminho

A viúva do Evangelho não procura honras, nem prestígio, mas age de maneira silenciosa e humilde. Dá tudo o que tem porque os outros podem ter necessidade. Segundo Jesus, deu mais do que outros, porque não dá do que lhe sobra, mas «tudo o que tem para viver».

Estas pessoas simples, mas com grande coração e cheios de generosidade, que sabem amar sem reservas, é o melhor que temos na Igreja. São elas que fazem o mundo mais humano, as que crêem verdadeiramente em Deus, as que mantêm vivo o Espírito de Jesus no meio de outras atitudes religiosas falsas e interesseiras. Destas pessoas temos de aprender a seguir Jesus. São as que mais se parecem a ele.

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São Nuno de Santa Maria – 6 de Novembro

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Nuno Álvares Pereira nasceu a 24 de Junho de 1360 em Cernache do Bonjardim, e foi educado nos ideais nobres da Cavalaria medieval, no ambiente das Ordens militares e depois na Corte real. Tal ambiente marcou a sua juventude. Aos dezasseis anos casou-se com Dona Leonor de Alvim, e desta união nasceram três filhos, sobrevivendo apenas a sua filha Beatriz. As suas qualidades e virtudes impressionaram particularmente o Mestre de Aviz, futuro rei D. João I, que encontrou em Dom Nuno um exímio chefe militar e nomeou-o Condestável, isto é, Comandante supremo do exército. Nuno conduziu o exército português repetidas vezes à vitória, sendo a mais significativa a de Aljubarrota a 14 de Agosto de 1385, assegurando a independência de Portugal em relação ao Reino de Castela.

Nuno Álvares Pereira em face das suas virtudes heróicas e religiosas, desde muito cedo recebeu do povo o título de Santo Condestável. Sendo um guerreiro, não foi por vocação bélica, mas por defesa de valores que ele considerava principais: por um lado, o amor à Pátria e a lealdade ao monarca escolhido pelo povo, Dom João I, por outro lado, o espírito da cruzada, face à posição de Castela, que optara pela obediência ao Papa de Avinhão (durante o Grande Cisma do Ocidente), enquanto Portugal se manteve leal a Roma, de onde ter direito ao título de Nação Fidelíssima. Por conseguinte, a gesta heróica do Condestável teve em vista, de forma especial, a unidade da Igreja na obediência romana. As virtudes militares não o levaram a esquecer a prática das virtudes, sobretudo a caridade. São muitos os testemunhos do tempo sobre a caridade que praticava com os adversários, não os considerando inimigos, mas apenas opositores. No final de várias batalhas, ele mesmo ordenava aos seus militares que tratassem dos mortos e sobretudo dos adversários feridos em combate, aos quais protegia da espontânea revolta popular. Isto é: fez a guerra em nome da paz. Ainda guerreiro, era conhecido por ser um homem de fé e de oração, raro iniciando uma batalha sem antes se recolher em oração, sem pressa de combate.

Em reconhecimento dos serviços prestados ao País e ao Reino, foi largamente premiado pelo Rei Dom João I com a oferta de muitos bens, sobretudo terras e povoações, tornando-se o homem mais rico de Portugal a seguir ao Rei. À medida que os deveres bélicos o deixavam mais livre, e já coberto de glórias, iniciou uma nova fase de vida, em 1393, partilhando com os seus companheiros de armas algumas das numerosas terras que lhe tinham sido doadas. Escolhendo para si mesmo uma vida de oração e de contemplação, iniciou, em 1389, numa das colinas de Lisboa, a construção de um convento, com Igreja de estilo gótico que chegou a ser tida como a mais bela da cidade. Deu ao convento o nome de Nossa Senhora do Vencimento, em acção de graças pelas suas vitórias e, poucos anos depois (decerto 1397), escolheu para habitantes do novo Convento os frades Carmelitas que, nessa época, só dispunham de uma comunidade, em Moura, no Sul de Portugal. Para Governo e sustento da nova comunidade de Lisboa, que veio a ser a mais importante, fez a doação de um valioso património, reservando-se o direito de ser ele a administrar esse património, enquanto vivo fosse. Em 1423, celebrando-se o I Capítulo Provincial dos Carmelitas portugueses, D. Nuno fez a doação definitiva da igreja e convento de Lisboa à Ordem do Carmo, nela professando como donato, recusando mesmo o título de Frei, gostando de ser chamado Nuno, simplesmente Nuno.

Desprendido dos bens materiais, desejou realizar três intenções: mendigar o sustento pelas ruas da cidade, não consentir outro título que não fosse Nuno, e sair de Portugal para viver onde fosse desconhecido. Não foi preciso sair, porquanto Dom João e Dom Duarte lhe estabeleceram uma pensão para seu sustento, pensão essa que, ao fim e ao cabo, Nuno de Santa Maria distribuía pelos pobres e necessitados que à porta do Convento se aglomeravam, ganhando, entre o povo, o título de Pai dos Pobres. Já antes de professar na Ordem do Carmo, que preferiu em vista do seu altíssimo culto por Maria, Mãe de Jesus, Nuno dera provas de pureza e de castidade, de silêncio e de oração, praticando as virtudes teologais e cardeais, recusando as seduções do mundo. Todavia, os carismas que se tornam mais palpáveis são os do despojamento e da pobreza. Desprende-se de toda a propriedade material, torna-se pobre e vive como pobre para os pobres. Assim o viu o autor da Crónica do Condestável: “apartou-se a servir a Deus em estado de pobre”. O seu amor pela Virgem do Monte Carmelo levou-o a promover o culto mariano, mediante a devoção pelo significado do Escapulário. Com efeito, começou por convidar pessoas do seu conhecimento, tanto nobres como pobres, a reunirem-se para a prática devocional do Escapulário, dando origem à primeira Confraria de Leigos em Lisboa, chamada “Confraria do Bentinho”, origem da futura Ordem Terceira Secular. Foi, portanto, o fundador, do movimento do laicado carmelita.

Beatificado em 1918, pelo Papa Bento XV, foi canonizado pelo Santo Padre Bento XVI, em 26 de Abril de 2009, em Roma, deste modo se confirmando tanto a antiguidade do culto como o provado exercício das virtudes heróicas.

 

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