Chamam-na «anjo do Burundi». É uma mulher tutsi, que fez da integração entre tutsis e hutus a razão de ser da sua vida. Recusou resignar-se diante do conflito que opõe estes dois povos e fez da sua vida uma cruzada de amor e reconciliação, criando um futuro diferente para crianças de ambas as etnias.
Tenho 53 anos de idade e desde os meus seis anos que o meu país vive em guerra fratricida. Não deve haver outro país onde se mate assim, sem medo. Em 1961 mataram o príncipe, em 1965 o primeiro-ministro, em 1972, em 1988 e depois em 1993, hutus e tutsis mataram-se mutuamente numa tragédia que não tem nome. Eu sou tutsi e na minha família perdi 62 pessoas, entre tios e tias, primos e primas. Apesar disso, sempre me recusei a olhar para o meu irmão hutu como um criminoso. O baptismo que eu recebi converteu-me em filha de Deus e irmã de cada pessoa. O que agora faço para benefício das crianças e jovens hutus e tutsis é por estar convencida que eu pertenço a uma família muito grande e muito nobre.
Naquela noite do meu desespero, que se seguiu ao massacre das 70 pessoas (adultos e crianças), que eu escondia, na casa do Bispo onde até então trabalhava – enquanto eu chorando dizia ao Senhor «Tu não és um Deus de amor!» – ouvi na capela a voz das sete crianças que sobreviveram ao massacre, que diziam: «Sim… estamos aqui salvos milagrosamente.» Tinham-se escondido na sacristia. Nessa noite, compreendi o dom da fé que não engana. Eram quatro crianças hutus e três tutsis, todas órfãs, que eu então adoptei sem saber onde as colocar, para onde ir. Os hutus não queriam nada comigo e os tutsis recusavam receber-me com as crianças hutus. Fomos, assim, recusados pela sociedade burundesa. Acabámos por ser recolhidos por um cooperante alemão, que pouco tempo depois regressou ao seu país. Fiquei novamente sozinha, com as crianças, sem dinheiro e sem casa. Dirigi-me então de novo ao bispo, que me acolheu com as crianças. Pensava que a guerra acabaria brevemente. Mas a minha aventura com as crianças não acabou: depressa eram 25 e sete meses depois eram mais de 300, dois anos mais tarde chegaram a 4000… A guerra demorou demasiado tempo e deixou uma multidão de órfãos.
Recusei-me a ficar amargurada. Dizia: «Senhor, se me dás estas crianças, ensina-me a educá-las com amor!» Podeis dar-vos conta que elas e eles fizeram de mim uma rainha… Cresceram, alguns são hoje profissionais, médicos, políticos… até sou «avó» de mais de 50 netos! Tudo isto é motivo mais que suficiente para não chorar mais por causa da guerra. Se, cada um de nós, na nossa vida, nos levantássemos e resistíssemos, seríamos capazes de mudar a face da Terra. Porque, como cristãos, se acreditamos, então somos capazes de deslocar o ódio e o medo e colocar no centro da nossa vida o amor.
Sempre peço às crianças que se sintam felizes porque somos todos criados à imagem de Deus. E quando me perguntam como é que perdoei às pessoas que mataram os meus familiares, costumo responder que, na cruz, um criminoso também se salvou.
Costumava, aos domingos, ir visitar os presos na prisão. Um dia, ao distribuir pelos presos a comida que levava, ouvi a voz de um que me chamava de uma cela de isolamento. Os funcionários da prisão responderam que não mo podiam mostrar. Como eu insisti para o ver, responderam-me que era a pessoa que tinha ateado fogo às minhas tias. «Precisamente por isso», respondi-lhes, «é que o quero ver.» Pensei que Jesus na cruz, quando o ladrão lhe disse que pensasse nele quando estivesse no paraíso, respondeu: «Esta tarde estarás comigo.» Quando cheguei junto do preso, fizemos-lhe a higiene, lavámo-lo. Ele perguntou-me: «Maggy, porque, depois de tudo o que fiz, me tratas assim?» Eu só lhe respondi: «Porque acredito em ti, que és pessoa!»
A pessoa que hoje comete um crime pode fazer coisas maravilhosas amanhã, porque Deus a salvou. E a imagem de Deus nunca nos é tirada. Somos nós que contribuímos para que os nossos irmãos acabem por cometer o mal. Se cada vez que nos encontramos com os nossos irmãos vemos e reconhecemos neles a imagem de Deus, o mundo mudaria para melhor, seria um paraíso. O assassino que encontrei na prisão converteu-se em meu irmão. Ajudei-o a encontrar trabalho e hoje é um pai de família, com esposa e filhos, que me disse reconhecido e arrependido: «O teu perdão ressuscitou-me e deu-me a dignidade que tinha perdido.»
Margarida Barankitse