O homem é criado para louvar, prestar reverência e servir a Deus nosso Senhor e, mediante isto, salvar a sua alma; e as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, para que o ajudem a conseguir o fim para que é criado. Donde se segue que o homem tanto há-de usar delas quanto o ajudam para o seu fim, e tanto deve deixar-se delas, quanto disso o impedem. Pelo que, é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas, em tudo o que é concedido à liberdade do nosso livre arbítrio, e não lhe está proibido; de tal maneira que, da nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que vida curta, e consequentemente em tudo o mais; mas somente desejemos e escolhamos o que mais nos conduz para o fim para que somos criados.
Santo Inácio de Loiola
Da Autobiografia de Santo Inácio
Inácio gostava muito de ler livros mundanos e fantasistas, que costumam chamar-se «de cavalaria». Quando se sentiu livre de perigo, pediu que lhe dessem alguns deste género para passar o tempo. Mas não se tendo encontrado naquela casa nenhum livro desses, deram-lhe a «Vita Christi» e um livro da vida dos Santos, ambos em vernáculo.
Com a leitura frequente destas obras, começou a ganhar algum gosto pelas coisas que ali estavam escritas. Mas deixando de as ler, detinha-se a pensar algumas vezes naquilo que tinha lido e outras vezes nas coisas do mundo em que antes costumava pensar.
Entretanto, Nosso Senhor vinha em seu auxílio, fazendo com que a estes pensamentos se sucedessem outros, sugeridos pelas novas leituras. De facto, lendo a vida de Nosso Senhor e dos Santos, detinha-se a pensar consigo mesmo: «E se eu fizesse como fez São Francisco e como fez São Domingos?». E reflectia em muitas coisas destas, durante longo tempo. Mas sobrevinham-lhe depois os pensamentos mundanos de que acima se fala, e também neles se demorava longamente. E esta sucessão de pensamentos durou muito tempo.
Mas havia esta diferença: quando se entretinha com os pensamentos mundanos, sentia grande prazer; e logo que, já cansado, os deixava, ficava triste e árido de espírito; quando, porém, pensava em seguir os rigores dos Santos, não somente sentia consolação enquanto neles pensava, mas também ficava contente e alegre depois de os deixar.
No entanto, não advertia nem considerava esta diferença, até que uma vez se lhe abriram os olhos da alma e começou a admirar-se desta diferença e a reflectir sobre ela; e compreendeu por experiência própria que um género de pensamentos lhe deixava tristeza e o outro alegria.
Mais tarde, quando fez os Exercícios Espirituais, foi desta experiência que tomou as primeiras luzes para compreender e ensinar aos seus irmãos o discernimento de espíritos.
Padre Luís Gonçalves da Câmara