Chegou a hora de colaborarmos, juntos, para erradicar tal brutalidade
O nosso trabalho levou-nos a reconhecer, uma vez mais, que a gravidade do flagelo dos abusos sexuais contra menores é um fenómeno historicamente difuso, infelizmente, em todas as culturas e sociedades. Mas, apenas em tempos relativamente recentes, se tornou objecto de estudos sistemáticos, graças à mudança de sensibilidade da opinião pública sobre um problema considerado tabu no passado, ou seja, todos sabiam da sua existência, mas ninguém falava nele. Estamos, pois, diante dum problema universal e transversal que, infelizmente, existe em quase toda a parte. Devemos ser claros: a universalidade de tal flagelo, ao mesmo tempo que confirma a sua gravidade nas nossas sociedades, não diminui a sua monstruosidade dentro da Igreja.
A desumanidade do fenómeno, a nível mundial, torna-se ainda mais grave e escandalosa na Igreja, porque está em contraste com a sua autoridade moral e a sua credibilidade ética. O consagrado, escolhido por Deus para guiar as almas à salvação, deixa-se subjugar pela sua fragilidade humana ou pela sua doença, tornando-se assim um instrumento de satanás. Nos abusos, vemos a mão do mal que não poupa sequer a inocência das crianças. Não há explicações suficientes para estes abusos contra as crianças. Com humildade e coragem, devemos reconhecer que estamos perante o mistério do mal, que se encarniça contra os mais frágeis, porque são imagem de Jesus. É por isso que actualmente cresceu na Igreja a consciência do dever que tem de procurar não só conter os gravíssimos abusos com medidas disciplinares e processos civis e canónicos, mas também enfrentar decididamente o fenómeno dentro e fora da Igreja. Sente-se chamada a combater este mal que atinge o centro da sua missão: anunciar o Evangelho aos pequeninos e protegê-los dos lobos vorazes.
Quero repetir aqui claramente: ainda que na Igreja se constatasse um único caso de abuso – o que em si já constitui uma monstruosidade –, tratar-se-á dele com a máxima seriedade. Irmãos e irmãs: na ira justificada das pessoas, a Igreja vê o reflexo da ira de Deus, traído e esbofeteado por estes consagrados desonestos. O eco do grito silencioso dos menores, que, em vez de encontrar neles paternidade e guias espirituais, acharam algozes, fará abalar os corações anestesiados pela hipocrisia e o poder. Temos o dever de ouvir atentamente este sufocado grito silencioso.
É difícil, porém, compreender o fenómeno dos abusos sexuais contra os menores sem a consideração do poder, pois aqueles são sempre a consequência do abuso de poder, a exploração duma posição de inferioridade do indefeso abusado que permite a manipulação da sua consciência e da sua fragilidade psicológica e física. O abuso de poder está presente também nas outras formas de abusos de que são vítimas quase oitenta e cinco milhões de crianças, no esquecimento geral: as crianças-soldado, os menores prostituídos, as crianças desnutridas, as crianças raptadas e frequentemente vítimas do monstruoso comércio de órgãos humanos, ou então transformadas em escravos, as crianças vítimas das guerras, as crianças refugiadas, as crianças abortadas, etc.
Perante tanta crueldade, tanto sacrifício idólatra das crianças ao deus poder, dinheiro, orgulho, soberba, não são suficientes meras explicações empíricas; estas não são capazes de fazer compreender a amplitude e a profundidade deste drama. A hermenêutica positivista demonstra, mais uma vez, a sua limitação. Dá-nos uma explicação verdadeira que nos ajudará a tomar as medidas necessárias, mas não é capaz de nos indicar o significado. E hoje precisamos de explicações e significados. As explicações ajudar-nos-ão imenso no sector operativo, mas deixar-nos-ão a meio do caminho.
Qual seria então o «significado» existencial deste fenómeno criminoso? Hoje, tendo em conta a sua amplitude e profundidade humana, só pode ser a manifestação actual do espírito do mal. Sem ter presente esta dimensão, permaneceremos longe da verdade e sem verdadeiras soluções. Irmãos e irmãs, estamos hoje perante uma manifestação do mal, descarada, agressiva e destruidora. Por detrás e dentro disto está o espírito do mal, que, no seu orgulho e soberba, se sente o dono do mundo e pensa que venceu. Isto gostaria de vo-lo dizer com a autoridade de irmão e pai (pequeno e pecador, sem dúvida, mas que é o pastor da Igreja que preside na caridade): nestes dolorosos casos, vejo a mão do mal que não poupa sequer a inocência dos pequeninos. E isto leva-me a pensar no exemplo de Herodes que, impelido pelo medo de perder o seu poder, ordenou massacrar todas as crianças de Belém. Por trás disto está satanás.
E assim como devemos tomar todas as medidas práticas que o bom senso, as ciências e a sociedade nos oferecem, assim também não devemos perder de vista esta realidade e tomar as medidas espirituais que o próprio Senhor nos ensina: humilhação, acusa de nós mesmos, oração, penitência. É o único modo de vencer o espírito do mal. Foi assim que Jesus o venceu.
Assim, o objectivo da Igreja será ouvir, tutelar, proteger e tratar os menores abusados, explorados e esquecidos, onde quer que estejam. Para alcançar este objectivo, a Igreja deve elevar-se acima de todas as polémicas ideológicas e as políticas jornalísticas que frequentemente instrumentalizam, por vários interesses, os próprios dramas vividos pelos pequeninos.
Por isso, chegou a hora de colaborarmos, juntos, para erradicar tal brutalidade do corpo da nossa humanidade, adoptando todas as medidas necessárias já em vigor a nível internacional e a nível eclesial. Chegou a hora de encontrar o justo equilíbrio de todos os valores em jogo e dar directrizes uniformes para a Igreja, evitando os dois extremos: nem judicialismo, provocado pelo sentimento de culpa face aos erros passados e pela pressão do mundo mediático, nem auto-defesa que não enfrenta as causas e as consequências destes graves delitos.
Faço um sentido apelo à luta total contra os abusos de menores, tanto no campo sexual como noutros campos, por parte de todas as autoridades e dos indivíduos, porque se trata de crimes abomináveis que devem ser cancelados da face da terra: pedem isto mesmo as muitas vítimas escondidas nas famílias e em vários setores das nossas sociedades.
Excerto do discurso do Papa Francisco no final da concelebração eucarística