Com o documento “Aperuit illis” (“Abriu-lhes”), o Papa Francisco estabelece que “o III Domingo do Tempo Comum” seja o “Domingo da Palavra de Deus”.
Decidimos fazer um “resumo” desta Carta para realçar algumas ideias fortes que o Santo Padre quer partilhar, para que “Possa o Domingo dedicado à Palavra fazer crescer no povo de Deus uma religiosa e assídua familiaridade com as Sagradas Escrituras, tal como ensinava o autor sagrado já nos tempos antigos: esta palavra «está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a praticares» (Dt 30, 14)”. O que é publicado é de responsabilidade única de “Caminhos Carmelitas”.
Aperuit illis (Abriu-lhes)
1. «ABRIU-LHES o entendimento para compreenderem as Escrituras» (Lc 24, 45). Trata-se de um dos últimos gestos realizados pelo Senhor ressuscitado, antes da sua Ascensão. Encontrando-se os discípulos reunidos, Jesus aparece-lhes, parte o pão com eles e abre-lhes o entendimento à compreensão das Sagradas Escrituras. Revela àqueles homens, temerosos e desiludidos, o sentido do mistério pascal, ou seja, que Ele, segundo os desígnios eternos do Pai, devia sofrer a paixão e ressuscitar dos mortos para oferecer a conversão e o perdão dos pecados (cf. Lc 24, 26.46-47); e promete o Espírito Santo que lhes dará a força para serem testemunhas deste mistério de salvação (cf. Lc 24, 49).
2. No termo do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, pedi que se pensasse num «Domingo dedicado inteiramente à Palavra de Deus, para compreender a riqueza inesgotável que provém daquele diálogo constante de Deus com o seu povo» (Carta ap. Misericordia et misera, 7). A dedicação dum Domingo do Ano Litúrgico particularmente à Palavra de Deus permite, antes de mais nada, fazer a Igreja reviver o gesto do Ressuscitado que abre, também para nós, o tesouro da sua Palavra, para podermos ser no mundo arautos desta riqueza inexaurível. A propósito, voltam à mente os ensinamentos de Santo Efrém: «Quem poderá compreender, Senhor, toda a riqueza duma só das tuas palavras? Como o sedento que bebe da fonte, muito mais é o que perdemos do que o que tomamos. A tua palavra apresenta muitos aspectos diversos, como diversas são as perspectivas daqueles que a estudam. O Senhor pintou a sua palavra com muitas belezas, para que aqueles que a perscrutam possam contemplar aquilo que preferirem. Escondeu na sua palavra todos os tesouros, para que cada um de nós se enriqueça em qualquer dos pontos que medita» (Comentários sobre o Diatessaron, 1, 18).
Assim, com esta Carta, pretendo dar resposta a muitos pedidos que me chegaram da parte do povo de Deus no sentido de se poder celebrar o Domingo da Palavra de Deus em toda a Igreja e com unidade de intenções.
3. Portanto estabeleço que o III Domingo do Tempo Comum seja dedicado à celebração, reflexão e divulgação da Palavra de Deus. As comunidades encontrarão a forma de viver este Domingo como um dia solene. Entretanto será importante que, na celebração eucarística, se possa entronizar o texto sagrado, de modo a tornar evidente aos olhos da assembleia o valor normativo que possui a Palavra de Deus.
4. O regresso do povo de Israel à pátria, depois do exílio de Babilónia, foi assinalado de modo significativo pela leitura do livro da Lei. A Bíblia dá-nos uma comovente descrição daquele momento, no livro de Neemias. O povo está reunido em Jerusalém, na praça da Porta das Águas, a escutar a Lei. Aquele povo dispersara-se com a deportação, mas agora encontra-se reunido à volta da Sagrada Escritura «como um só homem» (Ne 8, 1). Durante a leitura do Livro sagrado, o povo «escutava com atenção» (Ne 8, 3), ciente de encontrar naquela palavra o sentido para os acontecimentos vividos. Em reacção à proclamação daquelas palavras, brotou a comoção e o pranto. Os levitas «liam, clara e distintamente, o livro da Lei de Deus e explicavam o seu sentido, de modo que se pudesse compreender a leitura. O governador Neemias, Esdras, sacerdote e escriba, e os levitas que instruíam o povo disseram a toda a multidão: “Este é um dia consagrado ao Senhor, vosso Deus; não vos entristeçais nem choreis”. Pois todo o povo chorava ao ouvir as palavras da Lei. (…) “Não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa força”» (Ne 8, 8-9.10).
Estas palavras encerram uma grande lição. A Bíblia não pode ser património só de alguns e, menos ainda, uma colectânea de livros para poucos privilegiados. A Bíblia é o livro do povo do Senhor que, escutando-a, passa da dispersão e divisão à unidade. A Palavra de Deus une os crentes e faz deles um só povo.
5. Nesta unidade gerada pela escuta, primariamente os Pastores têm a grande responsabilidade de explicar e fazer compreender a todos a Sagrada Escritura. Uma vez que é o livro do povo, todos os que têm a vocação de ser ministros da Palavra devem sentir fortemente a exigência de a tornar acessível à sua comunidade.
Com efeito, para muitos dos nossos fiéis, esta (a homilia) é a única ocasião que têm para captar a beleza da Palavra de Deus e a ver referida à sua vida diária. Por isso, é preciso dedicar tempo conveniente à preparação da homilia. Nunca nos cansemos de dedicar tempo e oração à Sagrada Escritura, para que seja acolhida, «não como palavra de homens, mas como ela é realmente, palavra de Deus» (1 Ts 2, 13).
É bom também que os catequistas, atendendo ao ministério que desempenham de ajudar a crescer na fé, sintam a urgência de se renovar através da familiaridade e estudo das Sagradas Escrituras, que lhes consintam promover um verdadeiro diálogo entre aqueles que os escutam e a Palavra de Deus.
7. É profundo o vínculo entre a Sagrada Escritura e a fé dos crentes. Sabendo que a fé vem da escuta, e a escuta centra-se na Palavra de Cristo (cf. Rm 10, 17), daí se vê a urgência e a importância que os crentes devem dar à escuta da Palavra do Senhor, tanto na acção litúrgica, como na oração e reflexão pessoais.
8. A «viagem» do Ressuscitado com os discípulos de Emaús conclui com a ceia. O misterioso Viandante acede ao pedido insistente que os dois Lhe dirigem: «Fica connosco, pois a noite vai caindo e o dia já está no ocaso» (Lc 24, 29). Sentam-se à mesa; Jesus toma o pão, pronuncia a bênção, parte-o e dá-o a eles. Naquele momento, abrem-se-lhes os olhos e reconhecem-No (cf. Lc 24, 31).
A partir desta cena, compreendemos como seja indivisível a relação entre a Sagrada Escritura e a Eucaristia. O Concílio Vaticano II ensina: «A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor, não deixando jamais, sobretudo na sagrada Liturgia, de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, quer da mesa da palavra de Deus quer da do Corpo de Cristo» (Dei Verbum, 21).
O dia dedicado à Bíblia pretende ser, não «uma vez no ano», mas uma vez por todo o ano, porque temos urgente necessidade de nos tornar familiares e íntimos da Sagrada Escritura e do Ressuscitado, que não cessa de partir a Palavra e o Pão na comunidade dos crentes. Para tal, precisamos de entrar em confidência assídua com a Sagrada Escritura; caso contrário, o coração fica frio e os olhos permanecem fechados, atingidos, como somos, por inumeráveis formas de cegueira.
Sagrada Escritura e Sacramentos são inseparáveis entre si. Quando os Sacramentos são introduzidos e iluminados pela Palavra, manifestam-se mais claramente como a meta dum caminho onde o próprio Cristo abre a mente e o coração ao reconhecimento da sua acção salvífica. Neste contexto, é preciso não esquecer um ensinamento que vem do livro do Apocalipse; lá se ensina que o Senhor está à porta e bate. Se uma pessoa ouvir a sua voz e Lhe abrir a porta, Ele entra para cear junto com ela (cf. 3, 20). Cristo Jesus bate à nossa porta através da Sagrada Escritura; se ouvirmos e abrirmos a porta da mente e do coração, então Ele entra na nossa vida e permanece connosco.
9. Na II Carta a Timóteo, que de certa forma constitui o testamento espiritual de Paulo, este recomenda ao seu fiel colaborador que frequente assiduamente a Sagrada Escritura. O Apóstolo está convencido de que «toda a Escritura é inspirada por Deus e adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça» (3, 16).
Apelando-se, antes de mais nada, à recomendação de Paulo a Timóteo, a Dei Verbum sublinha que «os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas Sagradas Escrituras» (n. 11). Porque estas instruem tendo em vista a salvação pela fé em Cristo (cf. 2 Tm 3, 15), as verdades nelas contidas servem para a nossa salvação. A Bíblia não é uma colectânea de livros de história nem de crónicas, mas está orientada completamente para a salvação integral da pessoa. A inegável radicação histórica dos livros contidos no texto sagrado não deve fazer esquecer esta finalidade primordial: a nossa salvação. Tudo está orientado para esta finalidade inscrita na própria natureza da Bíblia, composta como história de salvação na qual Deus fala e age para ir ao encontro de todos os homens e salvá-los do mal e da morte.
Para alcançar esta finalidade salvífica, a Sagrada Escritura, sob a acção do Espírito Santo, transforma em Palavra de Deus a palavra dos homens escrita à maneira humana (cf. Dei Verbum, 12).
10.Com Jesus Cristo, a revelação de Deus alcança a sua realização e plenitude; e, todavia, o Espírito Santo continua a sua acção. De facto, seria redutivo limitar a acção do Espírito Santo apenas à natureza divinamente inspirada da Sagrada Escritura e aos seus diversos autores. Por isso, é necessário ter confiança na acção do Espírito Santo que continua a realizar uma sua peculiar forma de inspiração, quando a Igreja ensina a Sagrada Escritura, quando o Magistério a interpreta de forma autêntica (cf. ibid., 10) e quando cada crente faz dela a sua norma espiritual.
11. Muitas vezes corre-se o risco de separar Sagrada Escritura e Tradição, sem compreender que elas, juntas, constituem a única fonte da Revelação. O carácter escrito da primeira, nada tira ao facto de ela ser plenamente palavra viva; assim como a Tradição viva da Igreja, que no decurso dos séculos a transmite incessantemente de geração em geração, possui aquele livro sagrado como a «regra suprema da fé» (Ibid., 21). Além disso, antes de se tornar um texto escrito, a Palavra de Deus foi transmitida oralmente e mantida viva pela fé dum povo que a reconhecia como sua história e princípio de identidade no meio de tantos outros povos. Por isso, a fé bíblica funda-se sobre a Palavra viva, não sobre um livro.
12. Quando a Sagrada Escritura é lida com o mesmo Espírito com que foi escrita, permanece sempre nova. O Antigo Testamento nunca é velho, uma vez que é parte do Novo, pois tudo é transformado pelo único Espírito que o inspira. O texto sagrado inteiro possui uma função profética: esta não diz respeito ao futuro, mas ao hoje de quem se alimenta desta Palavra. Afirma-o claramente o próprio Jesus, no início do seu ministério: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir» (Lc 4, 21). Quem se alimenta dia a dia da Palavra de Deus torna-se, como Jesus, contemporâneo das pessoas que encontra; não se sente tentado a cair em nostalgias estéreis do passado, nem em utopias desencarnadas relativas ao futuro.
13. Outra provocação que nos vem da Sagrada Escritura tem a ver com a caridade. A Palavra de Deus apela constantemente para o amor misericordioso do Pai, que pede a seus filhos para viverem na caridade. A vida de Jesus é a expressão plena e perfeita deste amor divino, que nada guarda para si, mas a todos se oferece sem reservas. Escutar as Sagradas Escrituras para praticar a misericórdia: este é um grande desafio lançado à nossa vida. A Palavra de Deus é capaz de abrir os nossos olhos, permitindo-nos sair do individualismo que leva à asfixia e à esterilidade enquanto abre a estrada da partilha e da solidariedade.
15. No caminho da recepção da Palavra de Deus, acompanha-nos a Mãe do Senhor, reconhecida como bem-aventurada por ter acreditado no cumprimento daquilo que Lhe dissera o Senhor (cf. Lc 1, 45). Lembra-o um grande discípulo e mestre da Sagrada Escritura, Santo Agostinho: «Uma pessoa do meio da multidão, cheia de entusiasmo, exclamou: “Bem-aventurado o ventre que Te trouxe”. E Ele: “Mais felizes são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam”. Como que a dizer: também a minha mãe, a quem tu chamas bem-aventurada, é bem-aventurada justamente porque guarda a palavra de Deus, não porque n’Ela o Verbo Se fez carne e habitou entre nós, mas porque guarda o próprio Verbo de Deus por meio do Qual foi feita, e que n’Ela Se fez carne» (Sobre o Evangelho de São João, 10, 3).
Possa o Domingo dedicado à Palavra fazer crescer no povo de Deus uma religiosa e assídua familiaridade com as Sagradas Escrituras, tal como ensinava o autor sagrado já nos tempos antigos: esta palavra «está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a praticares» (Dt 30, 14).
Roma, 30 de Setembro de 2019
Francisco
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