Solenidade de São Pedro e São Paulo – Ano A

peterpaul

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus (Mt 16, 13-19)

Ao chegar à região de Cesareia de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta aos seus discípulos: «Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?» Eles responderam: «Uns dizem que é João Baptista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas.» Perguntou-lhes de novo: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo.»

Jesus disse-lhe em resposta: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu.» Depois, ordenou aos discípulos que a ninguém dissessem que Ele era o Messias.

A partir desse momento, Jesus Cristo começou a fazer ver aos seus discípulos que tinha de ir a Jerusalém e sofrer muito, da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos doutores da Lei, ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar. Tomando-o de parte, Pedro começou a repreendê-lo, dizendo: «Deus te livre, Senhor! Isso nunca te há-de acontecer!» Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: «Afasta-te, Satanás! Tu és para mim um estorvo, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens!»

Comentário do texto

Mateus 16, 13-16: As opiniões do povo e dos discípulos acerca de Jesus. Jesus quer saber a opinião do povo acerca da sua pessoa. As respostas são muito variadas: João Baptista, Elias, Jeremias, um dos profetas. Quando Jesus pede a opinião dos próprios discípulos, Pedro em nome de todos diz: “Tu és o Cristo o Filho de Deus vivo!”. Esta resposta de Pedro não é nova. Anteriormente, depois de caminhar sobre as águas, já os próprios discípulos tinham feito uma profissão de fé semelhante: “Verdadeiramente tu és o Filho de Deus! (Mt 14, 33). É o reconhecimento de que em Jesus se realizam as profecias do Antigo Testamento. No Evangelho de João a mesma profissão de fé é feita por Marta: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus que havia de vir a este mundo!” (Jo 11, 27).

Mateus 16, 17: A resposta de Jesus a Pedro: “És feliz, Simão”. Jesus diz que Pedro é “feliz”, porque recebeu uma revelação do Pai. Tampouco aqui a resposta de Jesus é nova. Já antes Jesus tinha feito uma declaração de felicidade aos discípulos porque viam e ouviam coisas que ninguém antes tinha conhecido (Mt 13, 16), e havia louvado o Pai por ter revelado o Filho aos pequeninos e não aos sábios (Mt 11, 25). Pedro é um dos pequeninos a quem o Pai se revela. A percepção da presença de Deus em Jesus não provém “nem da carne nem do sangue”, ou seja, não é o resultado de estudo, nem é mérito de nenhum esforço humano, mas é dom de Deus que o concede a quem quer.

16, 18-20: As qualificações de Pedro: ser pedra de fundamento e receber em posse as chaves do Reino.

Ser pedra: Pedro deve ser a pedra, a saber, deve ser o fundamento firme para a Igreja, de modo que possa resistir contra os assaltos das portas do inferno. Com estas palavras de Jesus dirigidas a Pedro, Mateus animava as comunidades da Síria e da Palestina que sofriam e eram perseguidas e que viam em Pedro o chefe que as selara desde o princípio. Apesar de serem débeis e perseguidas, elas tinham um fundamento sólido, garantido pela palavra de Jesus. Naquele tempo as comunidades cultivavam uma estreita e muito forte relação afectivacom os chefes que estiveram na sua origem. Assim as comunidades da Síria e da Palestina cultivavam a sua relação com a pessoa de Pedro. As da Grécia com a pessoa de Paulo. Algumas comunidades da Ásia com a pessoa do Discípulo Amado e outras com a pessoa de João do Apocalipse. Uma identificação com estes chefes que as originaram ajudavam-nas a cultivar melhor a própria identidade e espiritualidade. Mas também podia ser motivo de conflito, como no caso da comunidade de Corinto (1Cor 1, 11-12). Ser pedra como fundamento da fé evoca a Palavra de Deus dirigida ao povo no desterro da Babilónia: “Escutai-me, vós, os que seguis a justiça, os que procurais Yahvé. Considerai a rocha de que fostes talhados e a a pedreira de onde fostes tirados. Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, que vos deu à luz. Ele era um só, quando o chamei, mas abençoei-o e multipliquei-o” (Is 51, 1-2). Aplicada a Pedro esta qualidade de pedra-fundamento, indica um novo começo do povo de Deus.

As chaves do Reino: Pedro recebe as chaves do Reino para atar e desatar, ou seja, para reconciliar as pessoas com Deus. O mesmo poder de atar e desatar foi dado às comunidades (Mt 18, 8) e aos discípulos (Jo 20, 23). Um dos pontos em que o Evangelho de Mateus mais insiste é o da reconciliação e do perdão (Mt 5, 7.23-24.38-42.44-48; 18, 15-35). Nos anos 80 e 90 na Síria existiam muitas tensões nas comunidades e divisões nas famílias por causa da fé em Jesus. Alguns aceitavam-no como Messias e outros não. Isto era fonte de muitos conflitos e desavenças. Mateus insiste sobre a reconciliação. A reconciliação era e continua a ser um dos mais importantes deveres dos coordenadores das comunidades. Imitando Pedro, devem atar e desatar, isto é, trabalhar para que haja reconciliação, aceitação mútua, construção da verdadeira fraternidade.

A Igreja: A palavra Igreja, em grego ekklesia, aparece 105 vezes no Novo Testamento, quase exclusivamente nos Actos dos Apóstolos e nas Cartas. Somente três vezes nos Evangelhos, e só em Mateus. A palavra significa “assembleia convocada” ou “assembleia escolhida”. Esta indica o povo que se reúne convocado pela Palavra de Deus e procura viver a mensagem do Reino que Jesus trouxe. A Igreja ou a comunidade não é esse Reino mas um instrumento e um sinal do Reino. O Reino é maior. Na Igreja, na comunidade, deve ou deveria aparecer aos olhos de todos o que acontece quando um grupo humano deixa Deus reinar e tomar posse da sua vida.

Mateus 16, 21-22: Jesus completa o que falta na resposta de Pedro e este reage e não aceita. Pedro confessara: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo!”. Conforme a ideologia dominante do tempo, Pedro imaginava um Messias glorioso. Jesus corrige-o: ”É necessário que o Messias sofra e seja morto em Jerusalém”. Dizendo “é necessário”, Jesus indica que o sofrimento já estava previsto nas profecias (Is 53, 2-8). Se os discípulos aceitam Jesus como Messias e Filho de Deus, devem aceitá-lo também como Messias servo que vai morrer. Não só o triunfo da glória, mas também o caminho da cruz! Mas Pedro não aceita a correcção de Jesus e procura dissuadi-lo.

Mateus 16, 23: A resposta de Jesus a Pedro: pedra de escândalo. A resposta de Jesus é surpreendente: “Afasta-te, Satanás! Tu és para mim um estorvo, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens!”. Satanás é o que nos afasta do caminho que Deus nos traçou. Literalmente Jesus diz: “Coloca-te atrás de mim!”. Pedro queria tomar o comando e indicar a direcção do caminho. Jesus diz: “Atrás de mim!”. Quem assinala a direcção e o ritmo não é Pedro mas é Jesus. O discípulo deve seguir o mestre. Deve viver em conversão permanente. A palavra de Jesus era também uma mensagem para todos os que conduziam as comunidades. Eles devem “seguir” Jesus e não podem colocar-se à frente como Pedro queria fazer. Não são eles que podem indicar a direcção ou o estilo. Pelo contrário, como Pedro, em vez de pedra de apoio, podem converter-se em pedra de escândalo. Assim eram alguns chefes das comunidades nos tempos de Mateus. Havia ambiguidade. O mesmo pode acontecer hoje connosco!

Abrir

Domingo da Santíssima Trindade – Ano A

CATHOLICVS-La-Santisima-Trinidad-The-Holy-Trinity

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João (Jo 3, 16-18)

Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna. De facto, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele. Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no Filho Unigénito de Deus.

Uma chave de leitura

Nicodemos era um doutor que pretendia conhecer as coisas de Deus. Observava Jesus com o livro da Lei de Moisés na mão, para ver se a novidade anunciada por Jesus concordava com ele. No diálogo, Jesus faz compreender a Nicodemos (e a todos nós) que a única maneira de entender as coisas de Deus é nascer de novo! Hoje acontece o mesmo. Muitas vezes somos como Nicodemos: aceitamos só o que está de acordo com as nossas ideias. O restante é rejeitado e é considerado contrário à tradição. Mas nem todos são assim. Há muitas pessoas que se deixam surpreender pelos factos e não têm medo de dizer: “Nasce de novo!”.

Quando o evangelista recolhe estas palavras de Jesus, tem diante dos olhos a situação das comunidades dos finais do século primeiro e é para elas que escreve. As dúvidas de Nicodemos eram também as dúvidas das comunidades. E do mesmo modo, a resposta de Jesus é também uma resposta para as comunidades.

Comentário do texto

João 3, 16: Amar é dar-se por amor. A palavra amor indica antes de tudo, uma experiência profunda de relação entre diversas pessoas. Reúne um conjunto de sentimentos e valores como a alegria, a tristeza, o sofrimento, o crescimento, a renúncia, o dom de si mesmo, a realização, a doação, o compromisso, a vida, a morte, etc. No Antigo Testamento este conjunto de valores e sentimentos expressava-se pela palavra hesed que, nas nossas Bíblias, geralmente, é traduzida por caridade, misericórdia, fidelidade e amor.

No Novo Testamento, Jesus revelou este amor de Deus no seu encontro com as outras pessoas. Revelou-o com sentimentos de amizade, de ternura, como, por exemplo, na sua relação com a família de Marta em Betânia: “Jesus amava Marta, a sua irmã e Lázaro”. Chora diante do túmulo de Lázaro (Jo 11, 5, 33-36). Jesus assume a sua missão como uma manifestação de amor: “depois de ter amado os seus… amou-os até ao fim” (Jo 13, 1). Neste amor, Jesus manifesta a sua profunda identidade com o Pai: “Como o Pai me amou, também eu vos amei” (Jo 15, 9). Ele nos diz:“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15, 12). João define deste modo o amor: “por isto conhecemos o amor: Ele deu a vida por nós e nós devemos dar a vida pelos irmãos” (1Jo 2, 6). Quem vive o amor e o manifesta nas palavras e na sua conduta converte-se em Discípulo(a) Amado(a).

João 3, 17: Amou o mundo e ofereceu-se a si mesmo para salvar o mundo. A palavra “mundo” encontra-se 78 vezes no Evangelho de João e com diversas significações. Em primeiro lugar, “mundo” pode significar a terra, o espaço habitado pelos seres humanos (Jo 11, 9; 21, 25) ou a Criação (Jo 17, 5.24). Aqui, no nosso texto, “mundo” significa as pessoas que habitam nesta terra, toda a humanidade, amada por Deus, que por ela dá o seu Filho Unigénito (cf Jo 1, 9; 4, 42; 6, 14; 8, 12). Pode também significar um grupo numeroso de pessoas no sentido de “todo o mundo” (Jo 12, 19; 14, 27). Mas no Evangelho de João, “mundo” significa sobretudo, aquela parte da humanidade que se opõe a Jesus e se converte em seu “adversário” ou “opositor” (Jo 7, 4.7; 8, 23.26; 9, 39; 12, 25). Este “mundo” contrário à prática libertadora de Jesus, é dominado pelo Adversário, Satanás, chamado também “príncipe do mundo” (Jo 14, 30; 16, 11), que persegue e mata a comunidade dos fiéis (Jo 16, 33), criando uma situação de injustiça, de opressão, mantida pelos que estão no poder, pelos dirigentes, tanto do império como da sinagoga. Eles praticam a injustiça usando para este fim o próprio nome de Deus (Jo 16, 2). A esperança que o Evangelho de João comunica à comunidade é que Jesus vencerá o príncipe deste mundo (Jo 12, 31). Ele é mais forte do que o “mundo”. “Vós tereis tribulações no mundo mas tende confiança, eu venci o mundo” (Jo 16, 33).

João 3, 18: O Filho Unigénito de Deus dá-se por nós. Um dos títulos mais antigos e mais belos que os primeiros cristãos escolheram para descrever a missão de Jesus é o de Defensor. Na língua hebraica diz-se Goêl. Este termo indicava o parente mais próximo, o irmão mais velho, que devia resgatar os seus irmãos, ameaçados de perder os seus bens (cf. Lv 25, 23-55). Quando na época da deportação para a Babilónia, todo o povo, inclusivamente o parente mais próximo, perdeu tudo, o próprio Deus converteu-se no Goêl do seu povo. Resgatou-o da escravidão. No Novo Testamento, é Jesus o Filho Unigénito, o Primogénito, o parente mais próximo, o que se converte em nosso Goêl. Este termo ou título tem traduções diversas: salvador, redentor, libertador, advogado, irmão mais velho, consolador e muitos mais (cf Lc 2, 11; Jo 4, 42; Act 5, 31, etc.). Jesus toma a defesa e o resgate da sua família, do seu povo. Deu-se totalmente, completamente, a fim de que nós seus irmãos e irmãs pudéssemos novamente viver em fraternidade. Este foi o serviço que nos deu a todos. Foi assim que se cumpriu a profecia de Isaías que anunciava a vinda do Messias servo. Jesus disse: “O Filho do Homem não veio para ser servido mas para servir e dar a própria vida em resgate (goêl) por muitos” (Mc 10, 45). Paulo expressa esta descoberta com a seguinte frase: “Ele me amou e se entregou por mim” (Gal 2, 20).

Abrir

8.º Domingo do Tempo Comum – Ano A

campo-viola

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus (6, 24-34)

Ninguém pode servir a dois senhores: ou não gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.» «Por isso vos digo: Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Porventura não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestido? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as. Não valeis vós mais do que elas? Qual de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida? Porque vos preocupais com o vestuário? Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! Pois Eu vos digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã será lançada ao fogo, como não fará muito mais por vós, homens de pouca fé? Não vos preocupeis, dizendo: ‘Que comeremos, que beberemos, ou que vestiremos?’ Os pagãos, esses sim, afadigam-se com tais coisas; porém, o vosso Pai celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso. Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo. Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações. Basta a cada dia o seu problema.»

Mensagem

O “dito” do versículo 24 afirma a incompatibilidade entre o amor a Deus e o amor aos bens materiais (o termo utilizado por Mateus – “mamonas” – personifica o dinheiro como um poder que domina o mundo). Qual a razão dessa incompatibilidade?

Em primeiro lugar, Deus deve ser o centro à volta do qual o homem constrói a sua existência, o valor supremo do homem. Mas, sempre que a lógica do “ter” domina o coração, o dinheiro ocupa o lugar de Deus e passa a ser o ídolo a quem o homem tudo sacrifica. O verdadeiro Deus passa, então, a ocupar um lugar perfeitamente secundário na vida do homem; e o dinheiro – ídolo exigente, ciumento, exclusivo, que não deixa espaço para qualquer outro valor – é promovido à categoria de motor da história e de referência fundamental para o homem.

Em segundo lugar, o amor do dinheiro fecha totalmente o coração do homem num egoísmo estéril e não deixa qualquer espaço para o amor aos irmãos. O homem deixa de ter lugar, na sua vida, para aqueles que o rodeiam; e, por amor do dinheiro, torna-se injusto, prepotente, corrupto, explorador, auto-suficiente.

Na “instrução” (vers. 25-34) que se segue aos “ditos” sobre a riqueza, Mateus procura responder às seguintes questões: como deve ser ordenada a hierarquia de valores dos discípulos de Jesus? Os membros da comunidade cristã não se devem preocupar minimamente com as suas necessidades básicas? Para os discípulos de Jesus, o “Reino” deve ser o valor mais importante, a principal prioridade, a preocupação mais séria, aquilo que dia a dia “faz correr” o homem e que domina todo o seu horizonte (“procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça”).

E as preocupações mais “primárias” da vida do homem: a comida, a bebida, a roupa, a segurança?São valores secundários, que não devem sobrepor-se ao “Reino”. De resto, não precisamos de viver obcecados com essas coisas, pois o próprio Deus Se encarregará de suprir as necessidades materiais dos seus filhos (“tudo o mais vos será dado por acréscimo” – ver. 33). Aliás, quem aceita o desafio do “Reino” descobre rapidamente que Deus é esse Pai bondoso que preside à história humana, que cuida dos seus filhos, que vela por eles com amor, que conhece as suas necessidades: se Deus, cada dia, veste de cores os lírios do campo e alimenta quotidianamente as aves do céu, não fará o mesmo – ou até mais – pelos homens?

O crente que escolheu o “Reino” passa, então, a viver nessa serena tranquilidade que resulta da confiança absoluta no Deus que não falha.

A proposta de Jesus será um convite a viver na alegre despreocupação, na inconsciência, na passividade, no comodismo, na indiferença? Não. As palavras de Jesus são um convite a pôr em primeiro lugar as coisas verdadeiramente importantes (o “Reino”), a relativizar as coisas secundárias (as preocupações exclusivamente materiais) e, acima de tudo, a confiar totalmente na bondade e na solicitude paternal de Deus. De resto, viver na dinâmica do “Reino” não é cruzar os braços à espera que Deus faça chover do céu aquilo de que necessitamos; mas é viver comprometido, trabalhando todos os dias, a fim de que o sonho de Deus – o mundo novo da justiça, da verdade e da paz – se concretize.

Abrir

7º Domingo do Tempo Comum (Ano A)

1193323-bigthumbnail

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus (Mt 5, 38-48)

«Ouvistes o que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, digo-vos: Não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém quiser litigar contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa. E se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha com ele duas. Dá a quem te pede e não voltes as costas a quem te pedir emprestado.» «Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos? E, se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste.»

Neste Domingo VII do Tempo Comum, continuamos a escutar nas alturas, em alta frequência e alta-fidelidade, o que não se pode escutar cá em baixo, em onda média, no meio do barulho e do entulho. E soam hoje, aos nossos ouvidos atónitos, no nosso coração atónito, as duas últimas das “seis antíteses” proferidas por Jesus no SERMÃO DA MONTANHA e referentes à lei de talião e ao amor ao próximo (Mt 5, 38-48).

Diz a conhecida “lei de talião”, assim formulada no Livro do Êxodo: “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, contusão por contusão” (Ex 21, 24-25). Formulação semelhante desta lei já se encontra, de resto, nos parágrafos 196 e 197 do famoso código de Hammurabi, que remonta mais ou menos a 1700 anos antes de Cristo. E, ao contrário do que se diz habitualmente, esta lei não representa a barbaridade, mas um avanço civilizacional, pois assenta, não na multiplicação desenfreada da vingança e da violência, mas na sua contenção, pois condena o agressor a receber apenas a sanção igual àquela que ele provocou à vítima.

Bem diferente é a chamada Lei da vingança desenfreada, traduzida, por exemplo, no famoso “Cântico da espada” de Lamec, que se expressa assim no Livro do Génesis: “Eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. Sim, Caim é vingado sete vezes, mas Lamec setenta e sete vezes!” (Gn 4, 23-24). O que se vê aqui é que Lamec respira uma violência irracional, um ódio irracional. O que ouvimos nas alturas da Montanha é que Jesus respira e ensina um amor irracional, até ao paradoxo, ao absurdo e à estupidez, dissolvendo completamente os ódios, vinganças e violências do “Cântico de Lamec”, mas ultrapassando também a fria simetria da “lei de talião”. “Ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho, dente por dente’. Porém, Eu digo-vos: ‘Não resistais ao homem mau. Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda; se alguém te levar ao tribunal para ficar com a tua túnica, oferece-lhe também o manto; se alguém te forçar a acompanhá-lo durante 5 km, acompanha-o durante 10km’” (Mt 5, 38-41). Oh sublime ciência das alturas!

E Jesus continua em alta sintonia, altíssima alegria, altíssimo amor, estendendo o amor para além dos círculos restritos das nossas simpatias, até aos próprios inimigos! Amor assimétrico, que Jesus ensina agora nas alturas, mas que praticará e ensinará até à Cruz! Ele leva até ao alto do monte das Bem-Aventuranças e até ao alto do Calvário os nossos ódios desenfreados e a nossa fria justiça distributiva, e restitui-nos em troca o perdão excessivo e o amor transbordante.

Ao tempo de Jesus, o panorama do judaísmo palestiniano era dominado por duas escolas: a escola conservadora e rigorista de Shammai e a escola liberal de Hillel. Conta-se que, um dia, um homem se terá apresentado na escola de Shammai e fez ao mestre um estranho pedido: “Quero que, enquanto eu me mantiver apenas com um pé no chão, tu me expliques toda a Lei”. Diz-se que Shammai se limitou a pegar na sua vara de mestre e a correr o homem pela porta fora, pois era óbvio que o homem fazia um pedido impossível de cumprir, tal era a vastidão da Lei. Mas o homem não desanimou e dirigiu-se à escola de Hillel, a quem formulou o mesmo pedido. E Hillel terá respondido de pronto: “Nada mais fácil: ‘Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti’”.

A esta sentença de Hillel, na sua formulação negativa deu-se o nome de “regra de ouro”. Em boa verdade, ela já aparece no Livro de Tobias 4, 15. É, todavia, fácil de verificar que esta sentença é de fácil cumprimento. Dado que o seu teor é negativo, para a cumprir basta a alguém cruzar os braços e nada fazer. Procedendo assim, nada fará de inconveniente a ninguém, cumprindo assim escrupulosamente a sentença formulada.

Tentando talvez evitar a inação acoitada na formulação negativa anterior, os evangelhos apresentam desta máxima uma formulação positiva: “Faz aos outros o que queres que te façam a ti!” (Mt 7, 12; Lc 6, 31). Levando a sério esta formulação, já não é suficiente jogar à defesa e nada fazer, mas é, de facto, requerido o fazer. Seja como for, as duas formulações apresentadas, quer a negativa, quer a positiva, padecem do mesmo vício: sou eu o centro, é à minha volta que tudo roda, e o que eu faço ou deixo de fazer é com o objectivo claro de que me seja retribuído outro tanto!

O tom positivo da referida “regra de ouro” recebe ainda outra bem conhecida formulação: “Ama o teu próximo como a ti mesmo!”, que atravessa a inteira Escritura: Lv 19, 18; Mt 22, 39; Rm 13, 9; Gl 5, 14; Tg 2, 8. Mas também esta formulação é perigosa: primeiro, porque eu continuo a ser o centro, sendo eu a medida do amor devido aos outros; segundo, porque, se alguém não se ama a si mesmo (e são, infelizmente, cada vez mais os casos!), como poderá cumprir devidamente esta máxima?

É aqui que cai, como uma lâmina, a força do Evangelho que sai dos lábios de Jesus: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei” (Jo 13, 34). Aqui, a medida não sou eu. Aqui, a medida é Jesus, o das alturas, o do alto das montanhas. Aqui, a medida é sem medida! Aqui, o amor não é interesseiro. Aqui, o amor é puro, radical, incondicional, assimétrico, sem retorno. Aqui, o amor é até ao fim! Oh sublime ciência das alturas!

D. António Couto

Abrir

6º Domingo do Tempo Comum – Ano A

 

16486532_afwcK

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus (Mt 5, 17-37)

«Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição. Porque em verdade vos digo: Até que passem o céu e a terra, não passará um só jota ou um só ápice da Lei, sem que tudo se cumpra. Portanto, se alguém violar um destes preceitos mais pequenos, e ensinar assim aos homens, será o menor no Reino do Céu. Mas aquele que os praticar e ensinar, esse será grande no Reino do Céu. Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não superar a dos doutores da Lei e dos fariseus, não entrareis no Reino do Céu.»

«Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás. Aquele que matar terá de responder em juízo. Eu, porém, digo-vos: Quem se irritar contra o seu irmão será réu perante o tribunal; quem lhe chamar ‘imbecil’ será réu diante do Conselho; e quem lhe chamar ‘louco’ será réu da Geena do fogo.

Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois, volta para apresentar a tua oferta. Com o teu adversário mostra-te conciliador, enquanto caminhardes juntos, para não acontecer que ele te entregue ao juiz e este à guarda e te mandem para a prisão. Em verdade te digo: Não sairás de lá até que pagues o último centavo.»

«Ouvistes o que foi dito: Não cometerás adultério. Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração. Portanto, se a tua vista direita for para ti origem de pecado, arranca-a e lança-a fora, pois é melhor perder-se um dos teus órgãos do que todo o teu corpo ser lançado à Geena. E se a tua mão direita for para ti origem de pecado, corta-a e lança-a fora, porque é melhor perder-se um só dos teus membros do que todo o teu corpo ser lançado à Geena.» «Também foi dito: Aquele que se divorciar da sua mulher, dê-lhe documento de divórcio. Eu, porém, digo-vos: Aquele que se divorciar da sua mulher – excepto em caso de união ilegal – expõe-na a adultério, e quem casar com a divorciada comete adultério.»

«Do mesmo modo, ouvistes o que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás diante do Senhor os teus juramentos. Eu, porém, digo-vos: Não jureis de maneira nenhuma: nem pelo Céu, que é o trono de Deus, nem pela Terra, que é o estrado dos seus pés, nem por Jerusalém, que é a cidade do grande Rei. Não jures pela tua cabeça, porque não tens poder de tornar um só dos teus cabelos branco ou preto. Seja este o vosso modo de falar: Sim, sim; não, não. Tudo o que for além disto procede do espírito do mal.»

Mensagem

Continuamos a escutar, neste Domingo VI do Tempo Comum, o sublime Discurso da Montanha, hoje as quatro primeiras das famosas “seis antíteses” (Mt 5, 17-48), cujos temas são: o homicídio, o adultério, o divórcio, o perjúrio, a lei de talião, o amor ao próximo. Ouviremos então, neste VI Domingo do Tempo Comum, o sublime dizer de Jesus sobre os primeiros quatro temas: homicídio, adultério, divórcio e perjúrio (Mt 5, 17-37), enquanto nos preparamos para ouvir no próximo Domingo, VII do Tempo Comum, os dois importantes temas: a lei de talião e o amor que a todos devemos (Mt 5, 38-48).

Não nos esqueçamos que continuamos na Montanha, nas alturas, pois há certas maneiras de viver e de sentir que só podem ter o seu habitat nas alturas. O Papa João Paulo II escreveu na Carta Apostólica Novo millennio ineunte (2001), nº 31, que perguntar a um catecúmeno se ele quer receber o baptismo é o mesmo que perguntar-lhe se ele quer ser santo, e fazer-lhe esta última pergunta é colocá-lo no caminho do Sermão da Montanha. E logo a seguir, na mesma Carta e no mesmo número, João Paulo II define a santidade como a “medida alta” da vida cristã ordinária. É, portanto, imperioso que o cristão aprenda a ganhar altura, não para se separar dos caminhos lamacentos do quotidiano, mas para os encher de amor maior.

Cada uma das “seis antíteses” abre com as palavras de Jesus: «Ouvistes o que foi dito»; «porém, Eu digo-vos». Com esta técnica de contraponto, Jesus não quer que se desperdice nada do Antigo Testamento; quer antes enchê-lo, levar quanto aí é dito, que é Palavra de Deus, ao seu ponto mais fundo e mais alto. Por exemplo, quando ouvimos o que foi dito: «Não matarás!», não basta determo-nos no limiar do assassínio, como manda a letra, de acordo com uma leitura literalista e legalista da Palavra de Deus. É preciso ir mais fundo e mais alto: mondar todas as raízes da ira, do ciúme, da inveja, do ódio, desprezo e desamor, e encher todos os regos e cicatrizes de mais amor, mais amor, mais amor, só amor. Não se trata apenas de travar a fundo no último momento, evitando o acidente; trata-se de viver permanentemente a nova cultura do amor. Neste sentido, escreve São João, com ponta fina de diamante, não na pedra ou no papiro, mas no nosso coração meio embotado e engessado: «Quem não ama o seu irmão, é homicida» (1Jo 3, 15).

E assim também o adultério, o divórcio, o perjúrio. Qualquer destes pontos representa o fim de um amor, que é sempre um acontecimento dramático. Veja-se atentamente, neste mundo cinzento e insonso, sem sol e sem sal, em que vivemos, o drama imenso que cada divórcio comporta. Mas para encher de sentido o «porém, Eu digo-vos» de Jesus sobre estes pontos precisos, também não basta viver uma vida cinzenta e mentirosa e evitar em cima da linha chegar ao adultério, ao divórcio ou ao perjúrio. É necessário encher a vida inteira de amor, de mais amor e só amor.

É preciso levantar a vida, o coração, até ao cimo do monte das Bem-Aventuranças. E deixar-se deslumbrar, como a multidão, com este novíssimo, em conteúdo e método, ensinamento de Jesus (Mt 7, 28-29).

D. António Couto

Abrir

3º Domingo do Tempo Comum – Ano A

pescador[1]

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus (Mt 4, 12-23)

Tendo ouvido dizer que João fora preso, Jesus retirou-se para a Galileia. Depois, abandonando Nazaré, foi habitar em Cafarnaúm, cidade situada à beira-mar, na região de Zabulão e Neftali, para que se cumprisse o que o profeta Isaías anunciara: ‘Terra de Zabulão e Neftali, caminho do mar, região de além do Jordão, Galileia dos gentios. O povo que jazia nas trevas viu uma grande luz; e aos que jaziam na sombria região da morte surgiu uma luz’. A partir desse momento, Jesus começou a pregar, dizendo: «Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu.» Caminhando ao longo do mar da Galileia, Jesus viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. Disse-lhes: «Vinde comigo e Eu farei de vós pescadores de homens.» E eles deixaram as redes imediatamente e seguiram-no. Um pouco mais adiante, viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João, os quais, com seu pai, Zebedeu, consertavam as redes, dentro do barco. Chamou-os, e eles, deixando no mesmo instante o barco e o pai, seguiram-no. Depois, começou a percorrer toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando entre o povo todas as doenças e enfermidades.

Mensagem

Na primeira parte (cf. Mt 4,12-16), Mateus refere como Jesus abandona Nazaré, o seu lugar de residência habitual, e se transfere para Cafarnaúm. Mateus descobre nesse facto um significado profundo, à luz de Is 8,23-9,1: a “luz” que havia de eliminar as trevas e as sombras da morte de que fala Isaías é, para Mateus, o próprio Jesus. Na terra humilhada de Zabulão e Neftali, vai começar a brilhar a luz da libertação; e essa libertação vai atingir, também, os pagãos que acolherem o anúncio do Reino (para Mateus, é bem significativo que o primeiro anúncio ecoe na Galileia, terra onde os gentios se misturam com os judeus e, concretamente, em Cafarnaúm, a cidade que, pela sua situação geográfica, é uma ponte para as terras dos pagãos). O anúncio libertador de Jesus apresenta, desde logo, uma dimensão universal.

Na segunda parte (cf. Mt 4,17-23), Mateus apresenta o lançamento da missão de Jesus: define-se o conteúdo básico da pregação que se inicia, mostra-se o “Reino” como realidade viva actuante, apresentam-se os primeiros discípulos que acolhem o apelo do “Reino” e que vão acompanhar Jesus na missão.

Qual é, em primeiro lugar, o conteúdo do anúncio? O versículo 17 di-lo de forma clara: Jesus veio trazer “o Reino”. A expressão “Reino de Deus” (ou “Reino dos céus”, como prefere dizer Mateus) refere-se, no Antigo Testamento e na época de Jesus, ao exercício do poder soberano de Deus sobre os homens e sobre o mundo. Decepcionado com a forma como os reis humanos exerceram a realeza (no discurso profético aparecem, a par e passo, denúncias de injustiças cometidas pelos reis contra os pobres, de atropelos ao direito orquestrados pela classe dirigente, de responsabilidades dos líderes no abandono da aliança, de graves omissões no que diz respeito aos compromissos assumidos para com Jahwéh), o Povo de Deus começa a sonhar com um tempo novo, em que o próprio Deus vai reinar sobre o seu Povo; esse reinado será marcado – na perspectiva dos teólogos de Israel – pela justiça, pela misericórdia, pela preocupação de Deus em relação aos pobres e marginalizados, pela abundância e fecundidade, pela paz sem fim.

Jesus tem consciência de que a chegada do “Reino” está ligada à sua pessoa. O seu primeiro anúncio resume-se, para Mateus, no seguinte slogan: “arrependei-os porque o Reino dos céus está a chegar”. O convite à conversão (“metanoia”) é um convite a uma mudança radical na mentalidade, nos valores, na postura vital. Corresponde, fundamentalmente, a um reorientar a vida para Deus, a um reequacionar a vida, de modo a que Deus e os seus valores passem a estar no centro da existência do homem; só quando o homem aceita que Deus ocupe o lugar que Lhe compete, está preparado para aceitar a realeza de Deus. Então, o “Reino” pode nascer e tornar-se realidade no mundo e nos corações. Na sequência, Mateus apresenta Jesus a construir activamente o “Reino” (vers. 23-24): as suas palavras anunciam essa nova realidade e os seus gestos (os milagres, as curas, as vitórias sobre tudo o que rouba a vida e a felicidade do homem) são sinais evidentes de que Deus começou já a reinar e a transformar a escravidão em vida e liberdade.

Finalmente, Mateus descreve o chamamento dos primeiros discípulos (vers. 18-22). Através da resposta pronta de Pedro e André, Tiago e João, propõe-se um exemplo da conversão radical ao “Reino” e de adesão às suas exigências. O relato sublinha uma diferença fundamental entre os chamados por Jesus e os discípulos que se juntavam à volta dos mestres do judaísmo: não são os discípulos que escolhem o mestre e pedem para entrar no seu grupo, como acontecia com os discípulos dos “rabbis”; mas a iniciativa é de Jesus, que chama os discípulos que Ele próprio escolheu, que os convida a segui-l’O e lhes propõe uma missão.

A resposta dos quatro discípulos ao chamamento é paradigmática: renunciam à família, ao seu trabalho, às seguranças instituídas e seguem Jesus sem condições. Esta ruptura (que significa não só uma ruptura afectiva com pessoas, mas também a ruptura com um quadro de referências sociais e de segurança económica) indicia uma opção radical pelo “Reino” e pelas suas exigências.

Uma palavra para a missão que é proposta aos discípulos que aceitam o desafio do “Reino”: eles serão pescadores de homens. O mar é, na cultura judaica, o lugar dos demónios, das forças da morte que se opõem à vida e à felicidade dos homens; a tarefa dos discípulos que aceitam integrar o “Reino” será, portanto, libertar os homens dessa realidade de morte e de escravidão em que eles estão mergulhados, conduzindo-os à liberdade e à realização plenas.

Estes quatro discípulos representam todo o grupo dos discípulos, de todos os tempos e lugares. Eles devem responder positivamente ao chamamento, optar pelo “Reino” e pelas suas exigências e tornarem-se testemunhas da vida e da salvação de Deus no meio dos homens e do mundo.

Abrir

2º Domingo do Tempo Comum (Ano A)

aabautismo

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João (Jo 1, 29-34)

Naquele tempo João Baptista ao ver Jesus, que se dirigia para ele, exclamou: «Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! É aquele de quem eu disse: ‘Depois de mim vem um homem que me passou à frente, porque existia antes de mim.’ Eu não o conhecia bem; mas foi para Ele se manifestar a Israel que eu vim baptizar com água.» E João testemunhou: «Vi o Espírito que descia do céu como uma pomba e permanecia sobre Ele. E eu não o conhecia, mas quem me enviou a baptizar com água é que me disse: ‘Aquele sobre quem vires descer o Espírito e poisar sobre Ele, é o que baptiza com o Espírito Santo’. Pois bem: eu vi e dou testemunho de que este é o Filho de Deus.»

Mensagem

João é o apresentador oficial de Jesus. De que forma e em que termos o vai apresentar? Jesus é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo; e é o Filho de Deus que possui a plenitude do Espírito.

A primeira afirmação (“o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” – Jo 1,29) evoca, provavelmente, duas imagens tradicionais extremamente sugestivas. Por um lado, evoca a imagem do “servo sofredor”, o cordeiro levado para o matadouro, que assume os pecados do seu Povo e realiza a expiação (cf. Is 52,13-53,12); por outro lado, evoca a imagem do cordeiro pascal, símbolo da acção libertadora de Deus em favor de Israel (cf. Ex 12,1-28). Qualquer uma destas imagens sugere que a pessoa de Jesus está ligada à libertação dos homens.

A ideia é, aliás, explicitada pela definição da missão de Jesus: Ele veio para tirar (“eliminar”) “o pecado do mundo”. A palavra “pecado” aparece, aqui, no singular: não designa os “pecados” dos homens, mas um “pecado” único que oprime a humanidade inteira; esse “pecado” parece ter a ver, no contexto da catequese joânica, com a recusa da proposta de vida com que Deus, desde sempre, quis presentear a humanidade (é dessa recusa que resulta o pecado histórico, que desfeia o mundo e que oprime os homens). O “mundo” designa, neste contexto, a humanidade que resiste à salvação, reduzida à escravidão e que recusa a luz/vida que Jesus lhe pretende oferecer. Deus propôs-se tirar a humanidade da situação de escravidão em que esta se encontra; enviou ao mundo Jesus, com a missão de realizar um novo êxodo, que leve os homens da terra da escravidão para a terra da liberdade.

A segunda afirmação (o “Filho de Deus” que possui a plenitude do Espírito Santo e que baptiza no Espírito – cf. Jo 1,32-34) completa a anterior. Há aqui vários elementos bem sugestivos: o “cordeiro” é o Filho de Deus; Ele recebeu a plenitude do Espírito; e tem por missão baptizar os homens no Espírito. Dizer que Jesus é o Filho de Deus é dizer que Ele é o Deus que se faz pessoa, que vem ao encontro dos homens, que monta a sua tenda no meio dos homens, a fim de lhes oferecer a plenitude da vida divina. A sua missão consiste em eliminar “o pecado” que torna o homem escravo e que o impede de abrir o coração a Deus.

Dizer que o Espírito desce sobre Jesus e permanece sobre Ele sugere que Jesus possui definitivamente a plenitude da vida de Deus, toda a sua riqueza, todo o seu amor. Por outro lado, a descida do Espírito sobre Jesus é a sua investidura messiânica, a sua unção (“messias” = “ungido”). O quadro leva-nos aos textos do Deutero-Isaías, onde o “Servo” aparece como o eleito de Jahwéh, sobre quem Deus derramou o seu Espírito (cf. Is 42,1), a quem ungiu e a quem enviou para “anunciar a Boa Nova aos pobres, para curar os corações destroçados, para proclamar a libertação aos cativos, para anunciar aos prisioneiros a liberdade” (Is 61,1-2).

Jesus é, finalmente, aquele que baptiza no Espírito Santo. O verbo “baptizar” aqui utilizado tem, em grego, duas traduções: “submergir” e “empapar (como a chuva empapa a terra)”; refere-se, em qualquer caso, a um contacto total entre a água e o sujeito. “Baptizar no Espírito” significa, portanto, um contacto total entre o Espírito e o homem, uma chuva de Espírito que cai sobre o homem e lhe empapa o coração. A missão de Jesus consiste, portanto, em derramar o Espírito sobre o homem; e o homem que adere a Jesus, “empapado” do Espírito e transformado por essa fonte de vida que é o Espírito, abandona a experiência da escuridão (“o pecado”) e alcança o seu pleno desenvolvimento, a plenitude da vida.

A declaração de João convida os homens de todas as épocas a voltarem-se para Jesus e a acolherem a proposta libertadora que, em nome de Deus, Ele faz: só a partir do encontro com Jesus será possível chegar à vida plena, à meta final do Homem Novo.

Abrir